A defesa criminal tem um segredo?
No último post eu mencionei que o criminalista deve ser a pessoa que mais conhece o processo. Essa é a base de toda a defesa criminal. Sem isso não se decola. Mas mesmo para o advogado muito dedicado e combativo, é comum não conseguir bons resultados.
Por quê?
Qual a explicação disso?
Ora, o advogado não é o juiz. No final, não é ele quem decide. Mas, principalmente na defesa criminal, o papel do advogado é contraposto por todo o sistema. É comum a Polícia, o Ministério Público e o Judiciário estarem contra ele – além da sociedade.
Ninguém está do lado do advogado de defesa.
Isso dificulta obter resultados na defesa criminal. Entretanto, diante desse cenário totalmente desfavorável, ao invés racionalmente buscar melhorar as suas estatísticas, aumentar suas vitórias, muitos criminalistas se tornam Dom Quixote, lutando contra moinhos de vento.
A defesa criminal facilmente nos transforma em idealistas.
Idealistas demais e pouco pragmáticos.
Com isso, o advogado se afasta ainda mais da Polícia, do Ministério Público, do Judiciário e da sociedade. Aqueles que já não estavam do seu lado, ficam mais e mais distantes… Como remediar isso? E por que remediar?
Na minha impressão, os criminalistas são os advogados mais aguerridos, prontos para brigar por seus clientes, e portadores de uma extrema capacidade de se colocar no lugar do réu e sentir o peso do sistema. Ser acusado é um fardo difícil de carregar sozinho. Na verdade, talvez impossível, e por isso a importância da defesa criminal.
Porém, essa capacidade, de entender o fardo que o outro carrega, raramente é dirigida para o juiz (principalmente o juiz – que decidirá o destino do cliente).
Como o juiz pensa e se sente em relação a tudo aquilo?
Como você decidiria esse caso?
Essas são as perguntas que remediam o idealismo e aproximam você novamente do sistema. E qual a importância de se aproximar do sistema?
Somente conhecendo o sistema, é possível sobreviver a ele e vencê-lo.
Portanto, enquanto o idealismo excessivo nos leva, muitas vezes, a nos afastar da realidade, é com os pés no chão que conseguimos bons resultados.
Absolvendo Um dos Meus Primeiros Clientes
No post anterior eu prometi contar uma história.
Já falamos em outras oportunidades sobre uma multinacional que nos procurou no início da nossa carreira. Essa multinacional tinha um problema criminal. Ela havia sido denunciada por supostos crimes ambientais.
A investigação da Polícia Federal fora rigorosa. Vários laudos periciais foram elaborados e comprovariam os crimes.
E então?
Primeiro, conhecer o processo mais do que ninguém.
Esmiucei os mais de 20 volumes dos autos ao longo de duas semanas, procurando teses de defesa (eu tinha esse tempo por causa de um planejamento financeiro).
Encontrei várias (praticamente criei uma Lei de Crimes Ambientais, um Código Penal e um Código de Processo Penal anotado pela jurisprudência dos tribunais superiores e do tribunal responsável). Pesquisei precedentes, doutrinas, tudo relacionado aos crimes da denúncia.
Também criei uma planilha, com um histórico detalhado dos eventos e a localização dos documentos, permitindo facilmente o acesso às provas. Rapidamente eu conseguia saber o que havia ocorrido em uma determinada data ou onde estava um documento.
Compilei tudo no computador. Meu objetivo era ter o direito e as provas na ponta da língua.
Mas como desconstruir a contundência dos laudos periciais da Polícia Federal?
Perícias judiciais? Não… Quem conhecesse os precedentes sabe que o juiz nunca deferiria elas. Mas estudos e depoimentos de experts, para simples juntada, isso ele não poderia indeferir.
Ao longo de dois anos de defesa nós trabalhamos nisso, procurando profissionais para depor em juízo e também para elaborar estudos. Tudo que ajudaria a desconstruir os laudos periciais da Polícia Federal.
Isso sempre é possível? Não. Aqueles laudos realmente possuíam falhas (e a empresa possuía recursos para custear essa estratégia). Mas, o que é importante, nós não permanecemos inertes. Nós arrolamos diversas testemunhas, produzimos diversos documentos técnicos e inquirimos os peritos da Polícia Federal com o objetivo de comprovar essas falhas.
Nós não argumentamos que as falhas existiam. Nós comprovamos que as falhas existiam.
No final, todos foram absolvidos. O juiz reconheceu que os laudos da Polícia Federal não eram prova suficiente para condenar.
Em um exemplo prático, a diferença do idealismo e do pragmatismo.
Pés No Chão.
Então esse é o grande segredo? Excluir todo o idealismo? Longe de mim.
A advocacia criminal é a defesa intransigente dos direitos do cidadão contra as arbitrariedades do Estado. Esse é o combustível moral da profissão e faz parte do nosso dia a dia defender princípios superiores às leis dos homens, mesmo contra legem. E, sem alguém nesse papel, a Justiça morre.
Enfim, não se trata de “desanimar da virtude, de tanto ver triunfar as nulidades”, como diria Rui Barbosa. A Justiça no processo penal não prescinde de uma boa defesa criminal. E se o advogado fosse um praxista integrado no sistema, ele não agregaria nada à Justiça.
Mas é importante lembrar que existe um juiz.
Pés no chão é isso: é lembrar que existe um juiz.
Um juiz de carne e osso, com amizades e inimizades (às vezes com o Promotor de Justiça), com família, alguns com um passado questionável, outros sem nenhum histórico negativo, todos com problemas, arrependimentos, desilusões e certezas e conhecimentos, adquiridos ao longo da vida. Enfim, um juiz com uma história e uma circunstância. Um ser humano, de carne e osso. (como insiste em lembrar Alexandre Morais da Rosa).
Quando você coloca as coisas nessa perspectiva, necessariamente chega à conclusão de que defender seu cliente com uma tese rejeitada pelo Tribunal, pelo STJ e pelo STF, sem amparo doutrinário, tirada da sua cabeça, e de razoabilidade questionável, é ridículo.
É ridículo. É o mesmo que não defender.
Quando você lembra que existe um juiz de carne e osso, você chega à conclusão de que precisa de algo mais. Para convencer essa pessoa você precisa de um argumento mais palpável, mais razoável, mais defensável. Mais real.
E aqui chegamos ao nosso ponto.
O Segredo da Defesa Criminal:
Não existe presunção de inocência.
Esqueçamos tudo o que aprendemos na faculdade? O que vem sendo ensinado a séculos? Pare. Não se trata disso. A presunção de inocência é uma realidade. Mas é uma realidade jurídica. Um lugar comum retórico. A presunção de inocência é um argumento que pode ser utilizado.
Mas qual o problema dele?
Primeiro: A presunção de inocência pode ser usada sempre.
Sempre será possível defender que não existem provas suficientes. Filosoficamente, a presunção de inocência é a objeção cética.
Se você tem uma testemunha ocular, você não tem uma filmagem.
Se você tem uma filmagem, você não tem um laudo da integridade da filmagem.
Se você tem um laudo, você não sabe se o acusado não tem um irmão gêmeo.
Se ele não tem um irmão gêmeo, ele poderia ter um clone.
E assim por diante.
Segundo: Para funcionar, a presunção de inocência depende de um juiz.
Juízes que presumem a inocência existem? Sim. Mas você não pode partir da premissa de que isso ocorrerá.
Por isso, esse argumento não é forte. E por isso ele não deve ser a base da defesa criminal, e ser considerado um “último recurso”. Se tudo der errado, lá estará a presunção de inocência para socorrê-lo (e ela sempre está lá, portanto, não se preocupe tanto com ela).
Como eu contei, naquele caso da multinacional, nós não argumentamos que as falhas dos laudos existiam. Nós comprovamos que as falhas existiam. Nós mesmos não presumimos a inocência da empresa. E isso deu resultado.
No fim, não é por isso que queremos estar no controle? Ter mais resultados?
Então esqueça a presunção de inocência.
“Isso É Um Absurdo”
É preciso lembrar que a proposta, aqui, é mudar a lógica do advogado criminalista. Não a lógica do processo penal. Não se trata de mudar um princípio jurídico, mas de abandonar o uso desse princípio jurídico como regra prática, como regra heurística.
Normalmente, os advogados utilizam esta premissa:
“A acusação que precisa comprovar os fatos”
E o que acontece? A acusação não prova tão bem. A defesa não prova nada. O juiz se convence de qualquer forma. E o acusado, que paga os honorários, vai preso.
É como prestador de serviços que o advogado deve abandonar a confiança cega na presunção de inocência e considerar a premissa de que é preciso comprovar a inocência.
O processo penal deve continuar funcionando como determina a Constituição Federal: ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Mas não a cabeça dos advogados.
São universos diferentes. Apesar de estarem unidos.
Quando é possível comprovar a inocência (essa nem sempre essa é uma opção inteligente, nunca nos esqueçamos do caos) e o advogado aproveita essa oportunidade, a “dúvida razoável” que a doutrina menciona é real para o juiz. Ele a percebe.
Aí finalmente aquele homem de carne e osso estará vendo várias provas da acusação.
Mas também muitas coisas que o faz duvidar delas.
E já não ficará tão confortável para condenar…