Como analisar processos criminais? Em nosso primeiro post da série Advocacia Criminal na Prática, eu imagino que tenha ficado bastante claro que conhecer os processos criminais é o fator mais importante para advogar com sucesso na área. Mas você pode ter perguntado:
Existe um método para analisar processos criminais?
Parece-me que existe um método. Na minha trajetória profissional, eu estudei diversos processos criminais. Grandes e pequenos. Complexos e simples. Cometi vários erros na análise deles que me obrigaram a refazer tudo. Depois desses erros, identifiquei algumas regras básicas. São regras a serem observadas sempre.
O que vou tentar fazer neste post, e em outros, é organizá-las em uma sequência lógica, em um roteiro compreensível para analisar processos criminais.
Começamos pela parte mais importante: a denúncia.
Aviso! Os conhecedores do Direito Penal e do Processo Penal ficarão chocados com terminologias inapropriadas. Mas este não é um trabalho de doutrina, e, sim, um guia prático. Alcançarei meu objetivo se ajudar até mesmo um leigo a analisar o seu próprio processo (com óbvias limitações). Porém, para não abandonar a técnica, intercalarei terminologias imprecisas com aquelas corretas. Entretanto, talvez ainda assim reputem muito simples essas lições. Nesse caso, procurem a professora Patrícia Vanzolin, com quem tive as melhores aulas de prática penal.
A Importância da Denúncia
Se você estudou processo penal, sabe que existe o princípio da correlação entre a denúncia e a sentença.
De acordo com ele, a sentença não pode ultrapassar os limites da acusação. Realmente, o réu se defende dos fatos contidos na denúncia e seria uma sacanagem (ou uma “violação da ampla defesa”) condená-lo por um fato “surpresa”.
Ou seja, como tivemos oportunidade de escrever no artigo Prova de Caráter, a denúncia delimita o objeto da ação penal em um fato definido. É esse fato definido o objeto da defesa. Assim, para ser a pessoa que mais conhece o processo, é preciso conhecer em detalhe o fato definido na denúncia.
Por isso começamos nosso roteiro pela denúncia, em 5 passos:
1º Passo: Identificar o crime
O primeiro passo é simples.
Localize a denúncia (normalmente ela está no início dos processos criminais, mas em alguns sistemas eletrônicos ela fica depois do inquérito policial).
Vá ao final dela, na parte dos requerimentos, onde estará a tipificação do crime, ou seja, o artigo de lei pelo qual o Ministério Público pede a condenação (“tipo penal”).
Então, procure na legislação a redação exata desse tipo penal.
Anote em algum lugar ou fique com a lei ao alcance. Essa redação guiará a análise posterior.
2º Passo: Descompactar o tipo penal
Existem crimes mais simples e outros mais intrincados. Porém, em todos os processos criminais é importante descompactar o tipo penal.
Para realizar essa tarefa de forma adequada, é preciso conhecer a disciplina que estuda as normas penais (“dogmática penal”). Ou seja: é preciso estudar um bom livro de parte geral do Direito Penal. Para um advogado responsável e preocupado com a liberdade do seu cliente, isso é imprescindível.
Mas, em linhas gerais, descompactar o tipo penal é separá-lo nas suas diversas partes (“elementares do tipo penal”).
No caso do homicídio é fácil. “Matar alguém” (art. 121 do Código Penal) é dividido em duas partes: (1) “matar” e (2) “alguém”.
Já no estelionato, a tarefa é mais difícil. “Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento” (art. 171 do Código Penal) é dividido no mínimo em 6 partes: (1) “obter”, (2) vantagem ilícita”, (3) “para si ou para outrem”, (4) “em prejuízo alheio”, (5) “induzindo ou mantendo alguém em erro”, (6) “mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento”.
Um advogado experiente não faz essa separação em um papel, mas apenas mentalmente. Como ele já conhece o tipo penal de cor e salteado, esse processo é automático. Porém, para aqueles sem essa intimidade, é importante separar conscientemente e com atenção o tipo penal.
Dica! Evite separar elementos alternativos, como no caso do estelionato, “induzindo ou mantendo” e “artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento”. Essa separação pode levá-lo a crer que é preciso a presença de ambos (induzir e manter), quando na verdade qualquer um deles é suficiente.
3º Passo: Descompactar a denúncia
A denúncia é a descrição de um fato. Entretanto, um fato só interessa para o Direito quando ele se encaixa na previsão de uma norma (na terminologia técnica, “subsunção do fato à norma”). Em Direito Penal esse encaixe é chamado tipicidade.
Os mais experientes conhecem o chavão: “O réu se defende dos fatos contidos na denúncia e não da tipificação“. Essa frase justifica a autorização dada ao juiz de modificar o tipo penal na sentença, como prevê o art. 383 do Código de Processo Penal (que trata da “emendatio libelli”).
Entretanto, isso não afasta a necessidade de que os fatos se encaixem em algum tipo penal e o tipo penal descrito pelo Ministério Público é um bom começo. Portanto, não receie de usá-lo como ponto de partida.
Usando inicialmente esse tipo penal descompactado, leia a denúncia identificando as elementares do tipo penal. Se ajudar, faça uma cópia da petição e grife, sublinhe, glose. Você precisa ser capaz de responder onde estão escritos os fatos que correspondem a cada elementar.
Em crimes simples como o homicídio, dificilmente haverá alguma omissão na denúncia. O Ministério Público não esquecerá de dizer que alguém foi morto. Mas em casos mais complexos é comum encontrar a matéria central da defesa criminal. No caso do estelionato, por exemplo, às vezes o acusador esquece de descrever a “vantagem ilícita”, o “prejuízo alheio” ou o “meio fraudulento”.
Dica! Se você identificar apenas parte das elementares do tipo penal, a denúncia pode não estar cumprindo os requisitos legais (a denúncia é “inepta”). Ou, talvez, exista a possibilidade da chamada emendatio libelli. Olhe o Código Penal ou a lei especial, para confirmar se não existe outro artigo de lei compatível com a história da acusação (com a “imputação”).
4º Passo: Detalhar, com o Hexâmetro de Quintiliano
Depois de realizar essa primeira análise. Leia novamente a denúncia, atentando para os pontos do hexâmetro de Quintiliano. Aqui nós adaptamos o original para os processos criminais, sem conseguir escapar de uma terminologia mais técnica:
- Quem praticou o ato? Identificar o “sujeito ativo”.
- O quê foi praticado? Identificar a “conduta”, o “resultado” e o “sujeito passivo”.
- Por que meios a conduta gerou o resultado? Identificar o “nexo de causalidade” entre a conduta e o resultado.
- Por qual motivo? Identificar se era “exigível conduta diversa”. Identificar se o sujeito ativo praticou o ato com “consciência e vontade”.
- Como a conduta foi praticada? Identificar se o agente quis o resultado (“dolo direto”), assumiu o risco de produzi-lo (“dolo eventual”) ou causou o resultado por imprudência, negligência ou imperícia (“crime culposo”).
- Onde?
- Quando?
Dica! Observe que alguns desses pontos podem estar pouco claros na redação. A denúncia pode descrever que “João disparou o revólver contra Pedro, matando-o”. O nexo de causalidade entre o disparo do revólver e a morte não salta aos olhos, tampouco a vontade de disparar o revólver e matar. A “exigibilidade de conduta diversa” normalmente é presumida.
5º Passo: Pesquisar e Repetir
A doutrina e a jurisprudência podem atribuir interpretações diferentes para algumas elementares do tipo penal, ou até incluir algumas não previstas expressamente. Por isso, é importante realizar uma pesquisa sobre o crime em questão. Um Código Penal comentado normalmente é um ótimo ponto de partida. Para pesquisa de jurisprudência, utilize os filtros adequados.
Depois: Analisar a “justa causa para a ação penal”
Justa causa para a ação penal é, simplesmente, a existência de provas de que os fatos descritos na denúncia ocorreram. Portanto, identificados todos esse pontos, deve-se passar à análise do restante do processo, prestando atenção para os pontos identificados no 4º e no 5º passo. Aqui você poderá verificar o “onde” e “quando” (e descobrir que seu cliente tem um álibi) ou constatar se o Ministério Público interpretou os depoimentos corretamente (talvez ignorando alguma testemunha). Enfim, isso é assunto para outro post.
Resumindo:
- Identifique o artigo de lei pelo qual o Ministério Público pede a condenação (“tipo penal”)
- Separe o tipo penal nas suas diversas partes (“elementares do tipo penal”)
- Leia a denúncia identificando onde estão escritos os fatos que correspondem a cada elementar
- Identifique quem praticou o ato (“sujeito ativo”)
- Identifique o quê foi praticado (“conduta”, “resultado” e “sujeito passivo”)
- Identifique por que meios a conduta gerou o resultado (“nexo de causalidade”)
- Identifique qual o motivo (“exigibilidade de conduta diversa” e “dolo”)
- Identifique como a conduta foi praticada (“dolo direto”, “dolo eventual” ou “crime culposo”)
- Identifique onde e quando
- Pesquise jurisprudência e doutrina, e repita
- Veja as provas
Parece doloroso?
Na realidade, para um advogado experiente, todo esse trajeto é intuitivo e instantâneo. Tudo ocorre muito rapidamente e num só movimento (exceto pesquisar jurisprudência, doutrina e avaliar as provas).
Exercite essa análise com algumas denúncias e você rapidamente passará por todas essas etapas sem sofrimento.